A MÚSICA DE EUGENIA OSTERBERGER

Na sexta feira, dia 8 de setembro de 2017, tivo lugar no Musical Cienfuegos da Corunha o lançamento do livro-disco Eugenia Osterberger. A compositora galega da Belle Époque 1852-1932, da autoria de Beatriz López-Luevos, Susana de Lorenzo e Rosario Martínez Martínez, e editado por Ouvirmos.

A obra é um desses fitos absolutamente imprescindíveis para recuperar a nossa história e fazer país. Ninguém –ou quase ninguém– sabia nada de Eugenia Osterberger, incrivelmente, até os trabalhos e as pesquisas de Rosario Martínez, quem procurou a colaboração da investigadora e pianista Beatriz López-Suevos e assim mesmo da soprano Susana de Lorenzo. 

Como já pudéramos desfrutar tres anos antes no Museo de Belas Artes, os assistentes ao acto tivemos o privilégio de ouvir na esplêndida voz de Susana –acompanhada por Beatriz ao piano– várias composições do disco em italiano, em francês e nomeadamente em galego: as compostas pola autora a partir do Cancioneiro Popular Gallego de Pérez Ballesteros, assim como a peça Neve, sobre o texto de Filomena Dato Muruais.

Saudamos pois esta boa nova que fai possível o editor José Aldea, também presente na sala. A partir de agora o público poderá conhecer uma autora de grande altura, poderá gostar das quinze peças que integram a gravação e, através da leitura no livro, conhecerá os traços biográficos, a formação musical e o contexto cultural galego do século XIX e primeiros anos do XX em que Eugenia Osterberger se desenvolveu.

 

 

 

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ILHA DE ONS

Se de Portonovo embarcas para Ons terás de ver à direita o areal de Montalvo, desde onde tantas vezes contemplaras a beleza das ilhas. No Parque Nacional das Ilhas Atlânticas aparece este arquipélago como porta e guarda da ria de Pontevedra. Se a de Vigo tem as Cies e a de Arousa o arquipélago de Sálvora –com esse pequeno Noro tão amado–, bem se diria serem todos eles anacos de terra que se desprendessem há milhões de anos, e assim permanecessem polos séculos dos séculos. Mesmo a pequena Cortegada, recolhida e interior, pudo receber os versos do poeta: “Na illa Cortegada poñereille un galán / por pastor das mareas co seu remo na man. / A dorna vai e ven / que meu amor ten”. E aí está a ilha grande, a mais longa de todas as atlânticas, esperando a chegada do visitante. Mas entretanto o sol da manhã fai de prata e cores impossíveis as águas deste mar nosso.

Pouco antes de chegares observas a Onza ou Onceta à tua esquerda, ilha menor e de alto grau de protecção, de jeito que só é possível visitá-la com licença especial  e com fins científicos, e isso está bem, como acontece com a São Martinho das Cies. E quando te dás conta estás no peirão, e polo que ves diante podes levar uma ideia errada. Certo. A ilha de Ons está habitada. Ainda. É a única do Parque que está habitada,  se bem cada vez é menos gente a que fica no inverno de cotio. Dos centos de habitantes que chegou a ter, nas últimas décadas –e nomeadamente os últimos anos– a gente tivo de procurar outros lugares: primeiro indo de ida e volta a Bueu, e daí pensou em deixar de residir na ilha. Demandas de médico, mestre e cura residentes deram pouco resultado apesar de lhes construírem casa de seu. Iniciando a ruta sul, de 6,2 quilómetros e um desnivel de 86 metros, beireas a praia da Area dos Cans, com toda a sua doçura, mentres à direita se podem ver ainda mostras da arquitectura tradicional.

 

O carro do país, até há pouco utilizado, fica ao lado de várias construções, o mesmo que o arado de pau com ponta de ferro.

Isso é memória, claro. E que assim seja e não se esqueça, porque na realidade o primeiro meio de transporte que observas ao desembarcares é o tractor, de grande utilidade na orografia da ilha que se eleva desde o início.

A moça que nos ilustra na ruta guiada da tarde mostra-nos o que fora a antiga escola, e um pouco mais atrás o cemitério onde agora parece que não se enterra já ninguém.

Após a Area dos Cans está a “Laxe do Crego” e a “Praia de Canexoi”, de beleza inigualável, e o caminho vai ascendendo até enxergares o farol de Ons, alá no alto, e toda a linha de monte e praias que deixaras às costas. 

Toda a terra que se pisa é uma explosão de vida, e é vida animal e vegetal a que abrolha por toda a parte. Também os morcegos são espécie protegida, o que se pode ver nas caixinhas e aparelhos que observamos no tronco das árvores.

A ilha é mais doce quando mira a terra, e mais temerosa e bravia no seu lado oeste, e a gente construiu sempre as suas casas olhando para a costa do continente, porque a própria ilha fazia de abeiro e paraventos, como ainda hoje o fai. Será por isso que no suroeste está o mítico Buraco do Inferno, como diz Pedro Feijoo. No entanto é boa cousa não precipitar-se, pois antes é preciso demorar um tempo generoso no Mirador de Fedorentos, onde a vista é sensacional e privilegiada.

 

Acolá estão as ilhas!, dizia Sinbad marinheiro. É uma dessas imagens que reconfortam. O viageiro, quando alá chega, deseja que o tempo pare, que se detenha e não rompa o feitiço.  Desde a ponta Sul que pende à terra está em primeiro plano a inaccessível Onceta, a um palmo da mão. Ao longe em sobreposição estão as Cies, à esquerda o estilizado Cabo Homem –extremo do Morraço–, e quem tiver boa vista pode mais do que imaginar Cabo Silheiro. Uma beleza.

Abaixo, ainda invisível, a enseada de Fedorentos, e em primeiro termo um leito de fieitos que vislumbra a panorámica.

A partir daqui evitamos aceder à Ponta do Rabo da Égua e seguimos o roteiro verde para chegarmos ao Buraco do Inferno. Eis um dos elementos de interesse prévia, porque algumas mentes inquedas e obsessivas gostam sempre de baralhar os lindes da ficção e da realidade. Quem como o nosso viageiro conhecesse este lugar primeiramente pola literatura, terá muito prazer em descobrir que existe tal como se descreve no romance.

É recomendável a leitura do livro de Feijoo –Os fillos do mar–, como outros romances dele que ficcionalizam a partir de elementos históricos e reais. Mas deixando de parte a literatura, o Buraco do Inferno inscreve-se nas “furnas” ou covas marinhas, escavadas polo mar aproveitando as fendas existentes. Das Ilhas Atlânticas, Ons é a que possui maior riqueza de furnas, e esta, com 43 metros de profundidade em vertical, é sem dúvida a maior de todas. Segundo a lenda, a furna comunica com o mundo dos mortos, pois contam que no Buraco do Inferno é possível ouvir os lamentos das almas “que vagam entre os dous mundos, atormentadas no Lume Eterno por mor dos seus pecados”. O ruído infernal do bater do mar, nomeadamente em dias de temporal, assim como os gralhidos dos araus que tempos atrás aninharam no Buraco, poderiam explicar esses sons.

As características da furna, a sua verticalidade, fazem impossível o acesso desde a cima (e é difícil desde a água, só em maré baixa). Porém, um grupo de bombeiros desceu em 2016 (http://www.farodevigo.es/portada-o-morrazo/2014/09/26/baja-buraco-do-inferno-ons/1101347.html).

Sendo precavido, ainda é possível descer pola aba do cantil, de uma inclinação que tende à verticalidade, e situar-se a uns metros por riba da entrada da furna, onde penetra o mar e bate com estrondo alá dentro, e ouvem-se os embates das ondas na escuridade extrema e inacessível.

 

De regresso ao vieiro da ruta Sul, chega-se a um alto de onde se pode ver o ilhó das Freitosas, chamado assim talvez pola fractura das suas rochas e das que formam os cantis desta parte oeste da ilha, orientada cara ao oceano aberto e fortemente influenciada polas ondas e os ventos carregados de sal. 

Aqui a olhada perde-se na lonjania, e é gostosamente reparador enxergar o arquipélago de Sálvora, que semelha uma prolongação da Barbança, mas bem se aprécia a ilha grande, de tão pouca altura, a Sálvora de Cabanilhas onde dorme o seu sono o Rei Artur. Devido à sua planura não se observa a Vionta nem as Sagres, mas aí está o ilhote Noro, alto, arredondado e pétreo. Levedade cromática é a que nos mostra a ideia de Ribeira e  outras casas quase imaginadas, e detrás, pintada com aguarela, a serra do Barbança com o telhadinho bem traçado da Curota.

O caminho desce de modo sensível, abarcando a vista amplas estensões de terra. À esquerda está a ampla enseada de Canivelinhas e a Ponta das Gestas, cujo nome vém da Cytisus Insularis ou Gesta de Ons, espécie exclusiva das Ilhas Atlânticas e com as suas cores amarelas no tempo da flor.

 

Quando se volta para o bairro do Curro a paisagem é menos agreste, adentrando-nos às vezes em imagens fusquenlhas de arvoredo, como se nos levassem à casa da aldeia. 

Mas é o menos, porque o mais são os cimos espidos e arredondados, de maior altura que em Sálvora e sem os cumes elevados das Cies. Temos, porém, o Castro dos Mouros, sem escavar, no Monte do Castro, que se alça até os 76 metros. 

Viajar a Ons também nos confirma o que já sabíamos, se bem de modo mais simples: ser um dos melhores ecosistemas litorais atlânticos, com Cies, Sálvora e Cortegada. O 86 por cento da superfície protegida corresponde à zona marinha que circunda os arquipélagos, “onde os fondos rochosos e areosos e os bosques de algas unem a sua biodiversidade e ecosistemas terrestres sempre relacionados com o mar, como cantís, dunas ou matogueiras costeiras”. O facto de estas águas serem consideradas entre as mais ricas do mundo é o principal motivo de que as nossas ilhas sejam Parque Nacional.

No bairro do Curro, assim chamado como lugar fechado onde se juntava o gado, estão hoje os serviços essenciais da ilha, mesmo as vivendas construídas na metade do século XX para quem nunca chegou a habitá-las. É recomendável demorar um pedaço na Casa de Visitantes e descobrir a cultura das gentes de Ons.  Hoje são mui poucos os que ficam todo ano, ainda que muitos regressam à ilha no verão, ateigando de vida as casas marinheiras.

Em qualquer caso a tarde vai enchendo, e o viageiro leva de volta o peito cheio de vida. Sabe que resta mais da metade, nomeadamente a parte norte da ilha. E sabe imaginar as noites de silêncio e morna paz, submerso baixo esse quadrante estantio das estrelas que dixera o poeta. E fica apenas um olhar às dornas, meio de sustento durante anos das famílias polas águas arredor do arquipélago, varadas ou pousadas onde a praia do seu nome, a Praia das Dornas, ao pé do peirão, onde é possível o repouso debaixo de uma figueira.

 

Se fosse marinheiro de Ons, diria que se deixa alá ao fondo “a vila natal”… Mas essa é agora outra história.

Desde coberta começa o vento do mar, que se fai cálido num instante quando se enlinha a costa de Montalvo e Portonovo. As imagens ajuntam-se em multiplicidade de planos, de horas e recunchos de variedade infinita, como o voo das gaivotas e o revoar submerso e paralelo do corvo marinho. À frente e à direita está Sangenjo, a vila marinheira que viras por primeira vez no sessenta e oito com poucas casinhas e já um incipiente quiosque de postais. E Portonovo, ainda mais portinho de pescadores que polo de hoje vai conservando à par do grande turismo e da modernidade.

Afinal, quando voltas a olhar as ilhas desde Montalvo nas últimas horas do sol-pôr, sentes-te bem, e sabes que foi um desses dias dourados, aqueles polos que vale a pena seguir adiante.

 

 

 

 

 

 

 

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VOLTAR A CANGAS

IMG_1064O passado 15 de julho, sexta feira, tivem o prazer de actuar outra vez em Cangas do Morraço. O concelho tivo a feliz ideia de homenagear as Irmandades da Fala no seu centenário, e a tal fim organizaram este concerto com a intervenção do grupo Na virada, de Miro Casabella e de mim mesmo, que já participáramos uns anos atrás na homenagem a Bernardino Graña. Foi uma noite intensa de verão, com as luzes espelhadas na ria, a vibração da música e a temperatura ideal.

Noite de encontro com Xe Freyre e Héitor Mera –amigos do Grupo Literário Leiras Pulpeiro–, com Rosa, Carminha, Emilio e Santi que chegaram de Vilagarcia, e com Miro e Xico de Carinho que partilhavam o palco comigo. Só tenho palavras de agradecimento para tod@s, e para toda a gente que por alá andava…

Contei para o concerto com a grandeza musical de Alfonso Morán, cuja relação de irmandade não evita o meu reconhecimento objectivo como um dos maiores músicos do país, e sempre é um luxo contar com ele. Pois ao fio do evento contava-lhe eu que era a quarta vez que ia cantar a Cangas. A primeira deveu de ser alá polo 98 no Canis Lupus, levado por Xe Freyre, e sentim-me um pouco –salvando todas as distâncias– como se ele fosse Virgílio e me baixasse às profundidades do Inferno. A segunda, uns aninhos despois, na Casa da Cultura, propiciada por uma chamada de Celia Torres, de Xerais, e daquela bem recordo a presença de Filo e Ramón Rocamonde, de saudosa memória nestes dias, e o collage poético-musical que eu argalhara entre John Lennon e Bernardino. A terceira vez foi no auditório, quando o “poeta do mar” cumpria 75 anos, como antes comentava… e agora esta é a quarta…, e espero seja ainda o princípio de uma grande amizade ;)

Sempre é um prazer voltar a Cangas, e mais quando os amigos estão prontos para a olhada cómplice, alegre, saudosa e solidária. Com Miro significa recuar ao 74, naquele recital da Crunha no auditório da Normal ateigado de estudantes, cantando O meu país e as que não cantava porque estavam proibidas, e Manolinho Vieites berrava: “Miro, hai que comprometer-se”. Com Xico sempre lembramos Agra, aquele nosso grupo de jazz-rock com raízes, o primeiro no país, e quando fóramos juntos ao festival de Céltigos, “passando Espasante”, que dizia o Xico. Mas voltar a Cangas é sempre re-encontrar o amigo Xe, que tenho de apresentar aos amigos de fora dizendo: este é Xe Freyre, de Mondonhedo afincado em Cangas desde há vinte anos… ainda que seja mais bem dos Moínhos… E ele corrige: eu o que sou é dos Moínhos… Mondonhedo está ao lado.

Apesar da hora, não pudem resistir à proposta de ficar uns minutinhos para um café com Xe e com Héitor, e fomos ao Canis Lupus. Quase não me lembrava, mas ao chegar confirmei que a rua era algo em pendente, e à esquerda. Nada mais entrar viu-me Lourdes, desde a barra, e dixo-me: olá, César! Incrível! Lembrava aquela vez… E não me estranha. Daquela vez, primeiro, antes do concerto, percorréramos os bares mais emblemáticos da localidade… Despois, bem passadas as once, começara o concerto (entre hora e meia e duas horas)…, e a partir daí nem sei o que pudo acontecer… Sei que estivemos cantando toda a noite, com as portas fechadas, e quando saímos era dia claro… Só foi saír, dormir uma hora na casa do Xe, e a seguir ele colhia o barco para Vigo e eu a estrada para a Crunha.

Normal. Explico-me que Lourdes me reconhecesse decontado. E fora aí polo 98. 

https://www.facebook.com/cesarmoranfr/?fref=ts

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A CHAMADA DAS QUENDAS (Mondonhedo, 29-04-2016)

Vai aqui reproduzido o discurso que tivem a honra de emitir como “pregoeiro” das Quendas o 29 de abril de 2016 no Auditório Pascual Veiga de Mondonhedo. A partir do sétimo parágrafo pode seguir-se também e video, o que é possível graças à amabilidade do amigo Miguel Freire, que o gravou “in situ” e mo facilitou recentemente.

Senhora alcaldesa, membros da corporação municipal, amigos e público mindoniense! Boa tarde, senhoras e senhores!

É difícil explicar os sentimentos que me invadem ao estar aqui, em Mondonhedo, abrindo a porta com estas palavras a uma nova edição das Quendas. Quando um dia me chamou Miguel Souto, o presidente da comissão de festas das Quendas e as San Lucas, para me comunicar que pensaram em mim como pregoeiro deste ano, trás alguns instantes para digerir as palavras e ter a consciência de que falava em sério, fiquei de verdade sorprendido e dixem que me honrava infinitamente com essa distinção, mas que sem dúvida havia persoas mais indicadas…, porque eu bem sei que alguns me queredes muito desde essas pedras centenárias, e ainda milenárias…, que me sinto –como digo– mui honrado…, mas a minha relação com Mondonhedo é de ir e vir por mor da música e da literatura, por Cunqueiro e Pascual Veiga e Leiras e tantos músicos, poetas, artistas gráficos e gentes de bem. Por todo isso. Certo. Agradeço e aceito… Mas nem sou cidadão mindoniense, claro, e menos ainda vizinho…, ainda que o seja ou o fosse minha mãe. E aí está o grande paradoxo, porque, como se desprenderá das palavras que intento transmitir, sou mais mindoniense do que poderia parecer, e sem Mondonhedo eu não seria nada.

E chegados aqui, poderia fazer um discurso laudatório a esta cidade insigne, que desde o berce foi para mim uma referência contínua. Poderia louvar sem medida, a jeito de panegírico, o seu decurso épico e lírico na história de Galiza. E no entanto prefiro retirar dos olhos esse pano artificioso e nomear, com a subjectividade inevitável, os fios visíveis e invisíveis que aqui me levaram. Nesse sentido, a cidade apresenta-se ante a memória evocadora com imagens de luz e de sombra, com amor saudoso e profunda dor, o que talvez seja comum a outros casos e noutras geografias, como o Macondo literário de García Márquez, o Dublin de Joyce ou o Ourense de Blanco Amor. Isto é o que dixem sempre ao falar de Cunqueiro, e é o mesmo que eu agora sinto, desde a distância que me afasta destas já míticas referências.

Minha mãe sim, claro, e toda a minha família materna é de Mondonhedo. Os mindonienses exercem. Tenho-o comprovado. Levam essas raízes por sempre e por toda a parte, e tenhem fachenda, como fachenda deve ter Mondonhedo, no verso de Leiras, polo maestro Veiga: “Ben pode Mondoñedo dende agora, / anque vista farrapos, ter fachenda”. De Mondonhedo era meu avô, Graciano Fraga González, que fora secretário do julgado, e minha avó Ersília Veiga González, meu tio Gracianinho –Graciano Fraga Veiga–, irmão da minha mãe, e mais a tia Ersi, que se foi a Buenos Aires casada por poderes e alá botou raízes. Quando o Movimento Nacional, no trinta e seis, meu avô foi destituído do cargo: caluniado, traído, acusado de ser contrário ao matrimónio canônico e outras simpatias republicanas. Estivo destituído sete anos, e quando foi reabilitado tivo que saír de Mondonhedo. E toda a família se foi de Mondonhedo para nunca mais voltar.

Medrei entre livros velhos do meu avô, fotos e papéis inumeráveis dele mesmo e do seu filho Gracianinho, que era um artista. Também debuxos, desenhos, quantidade de material inédito. O ano passado Antonio Reigosa escreveu um esplêndido artigo sobre duas pinturas do meu tio, feitas quando contava apenas dezaseis anos e que se conservam no Museu Provincial de Lugo… No ocaso da sua vida o grande Cunqueiro falou-me carinhosamente do pobre Gracianinho, que acabou morrendo aos vinte e seis anos despois de enfermar em Burgo de Osma quando fora mobilizado. Era amigo dele, uns anos máis novo, e era poeta, pintor, debuxante e gozador do teatro e da farândula. Mas dom Álvaro salientava a sua amizade com o pai, dom Graciano, e relembrava o homem de pensamento livre e o deambular de ambos polas silenciosas ruas da cidade nos anos da República. Falava apaixonado do futuro e da liberdade, dizia Cunqueiro, e despois veu o Movimento em contra dos seus desejos e amolaram-no, injustamente, uma canalhada1. Não o cheguei a conhecer. Morreu aos sessenta e três anos, antes de meu pai conhecer a minha mãe, e no entanto a casa estivo sempre cheia da sua presença. A mesa do despacho, a sua letra caligráfica, perfeita, os livros dedicados… De não ser assim não teria eu nascido com um exemplar de Mar ao norde assinado polo génio. E todo isso numa casa ambulante, como é próprio da casa de um ferroviário… porque meu pai era ferroviário e do Bierzo (e essa é a minha outra metade). Em cada traslado, em cada mudança, um vagão de trem ia levando os enseres, a mobília, as cousas que ficaram… E entre elas um disco de vinilo, que era o Himno de Riego, ao que dediquei um recente artigo.

Quando meu avô foi destituído, no trinta e seis, a família tivo que vender todo para sobreviver. Segundo me conta minha mãe, recebia de maneira particular muitos paisanos que lhe vinham consultar este ou estoutro caso, e os mais dos pagamentos eram em espécies, claro, de jeito que tais actividades não evitavam a venda dos objectos que, para além dos mais dos móveis e alguma cousa de valor, era também o gramófono e os discos. Sempre imaginei o que seria a casa familiar alá nos anos vinte e trinta, na rua Júlia Pardo, quase diante do quartel, com aquele gramófono e ouvindo música clássica e moderna. Havia ser verdadeiramente cálido e reparador no Mondonhedo culto e clerical, o Casino de ambiente liberal que no seu dia tivera em Leiras um dos seus homes ilustres e progressistas, o Mondonhedo civil, literário e musical de antes da guerra. E em fim, ao se vender o gramófono, venderam-se também os discos. Todos menos um: o que continha o Himno de Riego. Um vinilo de 78 revoluções por minuto que nunca pudemos escuitar até o ano 74. E sempre me perguntei por quê ficou apenas aquele disco. Por quê não se vendera como os outros? E a resposta é –suponho– a que todo o mundo pode imaginar.

Todo isto que lhes conto são revelações, impressões na memória de um vínculo mui forte que me liga a Mondonhedo. Mondonhedo são as pedras. Mondonhedo é música, é arte e é silêncio. Mondonhedo é o ressoar da Paula, que eu tivem na memória muitos anos antes de poder ouvi-la realmente…

 Sou consciente de ter uma situação privilegiada na minha própria casa que me unia à cidade. A casa foi para mim uma escola de aprendizagem, e foi-no sobretodo pola presença da minha avó Ersilia, que me legou o pouso mindoniense através da música, a sua linguagem lírica e as suas vivências culturais e costumistas. Tinha uma afinação perfeita, cantava a duo com a minha mãe na cocinha e pola casa inteira –Há mesmo canções que só conheço na sua voz!– Na sua voz conhecim a música e a letra da Alborada, e sempre dizia que Pascual Veiga era primo do seu pai. Foi ela quem me dixo por primeira vez que o galego era uma língua. Falava-me de Pardo de Cela, da Ponte do Passatempo, do pular da cabeça dizendo “Credo, credo, credo”. Sabia infinidade de cantares e conhecia os personagens e eventos culturais de antes da guerra. Falava das monxas do asilo, do convento dos Picos, dos nenos de coro da Catedral e dos bispos e persoeiros do Seminário. E ela foi ainda quem me levou duas vezes a Mondonhedo: uma quando tinha eu três anos, e a outra quando tinha oito.

Da primeira pouco me podo lembrar, e nos vagos recordos entrecruzam-se as difusas imagens com o que sem dúvida me contaram despois. Da segunda, em troca, lembro bem a cidade: as estreitas ruas que o bus da empresa Ribadeo atravessava, queimando combustível, os cines que havia a cinco pesetas a entrada, a casa da tia Milagros, alguns rapazes da minha idade que conhecim…, e em fim, a catedral… e o bairro dos Muínhos. Dos Muínhos ficaram dous flashes imperecedeiros na minha memória: um deles foi ver trabalhar um oleiro, por vez primeira. Andando o tempo, e passeando com o amigo e admirado Xe Freire, ele afirmou que aquele oleiro era o seu pai. E o outro flash foi que, mentres eu olhava correr a água, pudem ver como minha avó conversava com um senhor e dixo-me: é meu irmão. Meu irmão Ricardo. O impacto foi grande já naquele momento, porque eu ignorava que minha avó tivesse um irmão… e que esse irmão estivesse em Mondonhedo…

Mas tiveram que passar mais de quarenta anos para eu saber que aquele Ricardo Veiga González, meu tio avô, fosse um homem de importante presença na cultura mindoniense. Formou parte do Orfeón Veiga (o mesmo que o seu cunhado Enrique Iglesias Díaz e o meu avô Graciano Fraga). Foi artista gráfico, e trás estar um tempo na Argentina, introduziu em Mondonhedo a técnica do gravado ao linóleo, como afirma Lence-Santar e recolhe o actual cronista da cidade, Antonio Reigosa. Mas se acudimos ao excelente blog “Miscelánea mindoniense”, de Andrés García Doural, vemo-lo também numa fotografia fazendo parte do quarteto “Os Pachecos”, fundado em 1907. Aí o meu tio aparece tocando o bombo, mas na nota explicativa pode ler-se que D. Ricardo Veiga González, também conhecido polo alcume de “O Bodego”, era filho de José Antonio Veiga Gasalla (ou seja, meu visavó e primo de Pascual Veiga), caixista e encarregado da imprenta Candia da rua Fevreiro de Mondonhedo, e de Severina González Bolaño (minha visavó), vizinhos do bairro das Casas Novas, etc. Na foto do quarteto aparecem cinco porque no meio está o director, D. José Castañeda Jurado, com uma partitura na mão. Mas a mim, por interesses de família, interessa-me salientar a presença do tio Enrique (na foto tocando a gaita), e não é outro que Enrique Iglesias Díaz, o que casou com a tía Milagros. Foi neno de coro da catedral, foi violinista da capela de música entre 1909 e 1920…, tenor, clarinetista… e fundador em 1934 da rondalha “Os Veiga”.

Passeando uma tarde polo bairro dos Muínhos, o amigo Xe Freire sinalou-me a casa do tio Ricardo, Ricardo Veiga, ao tempo que me indicava o lugar onde seu pai tinha o obradoiro: onde eu vira trabalhar por primeira vez um oleiro, em 1962. Para mim são referências importantes, porque na memória se juntam as lembranças particulares, de família, com o que um vai sabendo através dos livros e dos documentos. Por exemplo, hoje podemos ver a importância que tivo Ricardo Veiga como ilustrador na revista Galiza, que dirigiu Álvaro Cunqueiro, ou nos cartazes anunciadores das San Lucas. Mas a ideia que tivem desde neno do tio Ricardo era a de um rapaz algo risonho, que prendia algo na fala ao pronunciar o “r”, e que via como o seu irmão Guilhermo caía do corredor da casa, que não sei como se vinhera abaixo… E mentres o rapaz caía, o tio Ricardo ficava mirando e exclamando: “Aló vai!”. Essa anedota contava-se amiúde na minha família nas sobremesas, e para mim foi definitivo que Xe Freire me mostrasse a casa onde, acaso, tivera lugar aquele curioso episódio…, ainda que não podia ser naquela casa, pois ele foi para os Muínhos de casado.

Hoje estamos aqui, nesta cidade de tão larga, tão longa e tão ilustre história, para dar passo às festas das Quendas, tão antigas, e eu quereria rematar com um alegato em pro da cultura e da vivência nas raízes. Persoalmente, desde aquela segunda viagem quando tinha oito anos, não voltei a Mondonhedo até dez anos despois, quando vinhera cantar ao festival das San Lucas em 1972. Foi a partir daquele dia que o grupo Fuxan os Ventos se chamou assim, porque era o título da canção ganhadora. Despois não lembro de voltar até o enterro de Cunqueiro, em 1981, e possivelmente não voltasse até o 91 para participar nos congressos e outros actos de homenagem ao maior génio das letras galegas. Seria nos últimos anos dessa década quando me chamou o alcalde da cidade (na altura Xavier Loira) para constituir a Fundación Cunqueiro, hoje tristemente perdida na memória, e foi a partir de então que comecei a visitar Mondonhedo com frequência. Cunqueiro e Leiras Pulpeiro foram e seguem a ser motivos de encontro e de criação literária e musical… E a esta altura são igualmente os amigos, as persoas… um outro pretexto para viajar a Mondonhedo… Alguns tão antigos como Ramón Reimunde, outros , como Xe Freire e Antonio Meilán ou Fran Bouso, que conhecim na própria cidade há vinte anos…, e despois toda a gente arredor do Grupo Literário Leiras Pulpeiro. Todos eles galegos “bons e generosos”, que possuem a consciência da realidade que habitamos.

E foi em Mondonhedo onde mais intensamente degustei a grata presença de Manuel María, porque assistíamos às reuniões da Fundación Cunqueiro e despois sempre íamos jantar meia dúzia de amigos, beber um vinho reparador e desfrutar da palavra lírica, mas também irónica e retranqueira, do poeta da Terra Cha. De Manuel María poderia eu contar anedotas diversas com Mondonhedo de fondo, mas toca rematar.

Não sei se estas palavras servirão para abrir a porta das Quendas deste ano… Mas falei do que eu podia falar aquí, que era a minha relação com esta saudosa cidade. E creio que algo fica claro: todo o que há em mim de literário, de artístico, de musical…, procede de Mondonhedo. Todo Mondonhedo estava em mim antes de eu conhecê-lo e visitá-lo. E estava em mim porque o levava posto desde neno, nos livros velhos, nos papéis da casa, na poesia e na música.

Mindonienses, muito agradeço a vossa hospitalidade, o vosso carinho… e aquilo que me une e me identifica, apesar dos avatares da história. Viva Mondonhedo, e vivam as Quendas!

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Isto dizia Cunqueiro. Ainda que conservo todo o documento sonoro, esta parte da entrevista, tão íntima e familiar, não a publiquei nas edições escritas de 1982 e 2011 (em Homenaxe a Álvaro Cunqueiro, Universidade de Santiago de Compostela, e Grial 192 ), nem no segundo CD que integra Haberá Primavera (Galaxia, Vigo, 2011).

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MEMORÁVEL CONCERTO DE SILVIO RODRÍGUEZ NO COLISEUM DA CORUNHA

20160408_212658Antes de conhecer o meu amigo Jose, o canario, Silvio Rodríguez era para mim apenas um nome. Mas foi na mili, no Regimiento de Transmisiones de El Pardo, onde entrei em contacto com Jose, e foi ele quem me infundiu o entusiasmo, o amor e a querenza por Silvio. Era o 79-80, e naqueles dias de revolta e de fervor antimilitar “camuflavamo-nos” como podíamos nuns meses antes do 23F. Tinha uma sensibilidade extrema para a música, para a arte, e para todo o demais. Aproveitávamos qualquer momento livre para guitarrear na “furrielería” ou no quarto dos “primeiros”, ou arredor de um “catre”, na companha de Andrés, de Alfonso, de José Luis ou de Ignacio… Todos boa gente… Nun radiocasete escoitávamos os primeiros discos de Les Luthiers…, e também o Sultans of swing de Dire Straits que acabava de aparecer. Quando tínhamos os dous permiso saíamos a Madrid e tocávamos uma ou duas horas no passo subterrâneo de Cibeles, ou em qualquer outro lugar onde pudéssemos abrir o estojo da guitarra… Uma vez passou Berlanga e ficou dez minutos a olhar. Cantávamos cousas latinoamericanas, e galegas, e canárias…, e também de Silvio.
Desde aquela Silvio foi para mim uma referência, não sempre para imitar, mas era algo que seria para sempre. Em 1981 pudem vê-lo em Santiago, no pavilhão do Sar, com Pablo Milanés, e foi bonito. Mas o concerto do Coliseum foi sublime. Esperava algo grande, com muitas dúvidas sobre o como…, sem que imaginasse o grupo esplêndido de jazz que lhe permitia outra forma de voar… Silvio com a guitarra nas mãos…, mas sem ter necessidade mesmo de tocá-la, porque a inércia e o pulso do swing…, a essência do “tres”, o piano finíssimo, a bateria firme e delicada, percutiva e enormemente complexa no seu leve impacto, o vibráfono subtil, o contrabaixo exacto, as guitarras e a frauta imensa… faziam de Silvio um levitador de alturas.
Outro dia escreverei sobre os temas. Os que cantou e os que deixou no fondo da alma. Hoje só quero lembrar aqueles dias em que aprendim a amar as canções do Silvio, com o meu amigo Jose, o canário.

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UM VINILO DE 78 REVOLUÇÕES

20160410_162223Todas as cousas estão conectadas, como dizia Baudelaire… os perfumes, os aromas, as essências agachadas no fondo da lembrança, as ressonâncias que um está a ouvir, como um eco… a impressão digital que se tem com um livro velho, um vinilo antigo…, a história verdadeira que sempre estivo aí acaso sem nos percatar… E de repente todo abrolha por um sopro de vento, e as essências dormidas acordam e emergem à superfície.

O meu amigo Borja Casal está muito interessado em que conte isto, a história do vinilo. Que o escreva… porque lhe deveu de resultar curioso ou divertido o dia que lho referim indo para o ensaio. Se para mim o tempo se acurta e reprega como um acordeão, imagino o que pode ser para ele, que estes dias cumpre vinte anos. O certo é que o famoso vinilo existe.

Pois estava eu em São Pedro de Nós montando os instrumentos para o ensaio –toco num grupo de rock-blues, De catro a catro, e ensaiamos em São Pedro, num baixo da casa de Manu, o baixista ;)–, quando me chamou Miguel Souto, o presidente da comissão de festas das Quendas de Mondonhedo, para me comunicar que me nomearam pregoeiro no evento deste ano. Trás alguns instantes para digerir as palavras e ter a consciência de que era em sério, fiquei de verdade sorprendido, e esperei a que ele parasse de falar, o que não foi possível e tivem que pará-lo eu, agradecendo primeiro terem pensado em mim, que me honrava infinitamente com essa distinção, mas que sem dúvida havia persoas mais indicadas…, porque eu bem sei que me quereis muito alguns desde essas pedras centenárias, e ainda milenarias, que me sinto como digo mui honrado…, mas a minha relação com Mondonhedo é de ir e vir por mor da música e da literatura, por Cunqueiro e Pascual Veiga e Leiras. Por todo isso. Certo. De acordo, a decisão foi unánime. Entendo. Agradeço e aceito… Mas nem sou cidadão mindoniense, claro, e menos ainda vizinho…, ainda que o seja minha mãe.

Minha mãe sim, claro, e toda a minha família materna é de Mondonhedo. Os mindonienses exercem. Tenho-o comprovado. Levam essas raízes por sempre e por toda a parte, e têm fachenda, como fachenda deve ter Mondonhedo, no verso de Leiras, polo maestro Veiga. De Mondonhedo era meu avô, Graciano Fraga González, que fora secretário do julgado na cidade, e minha avó Ersilia Veiga González, meu tio Gracianinho, Graciano Fraga Veiga, irmão da minha mãe, e mais a tia Ersi, que se foi a Buenos Aires casada por poderes e alá botou raízes. Quando o Movimento, no trinta e seis, meu avô foi destituído do cargo: caluniado, traído, acusado de ser contrário ao matrimónio canônico e outras simpatias republicanas. Estivo destituído sete anos, e quando foi reabilitado tivo que sair de Mondonhedo. Toda a família se foi de Mondonhedo para nunca mais voltar.

Medrei entre livros velhos do meu avô, fotos e papéis inumeráveis dele mesmo e do seu filho Gracianinho, que era um artista. Também debuxos, desenhos, quantidade de material inédito. O ano passado Antonio Reigosa escreveu um esplêndido artigo sobre duas pinturas do meu tio, feitas quando contava apenas dezaseis anos e que se conservam no museu provincial de Lugo, porque fora um dos moços pensionados pola Deputação de Lugo para irem formar-se a Madrid… Gracianinho nunca foi a Madrid, acaso porque meu avô preferiu tê-lo no julgado de Mondonhedo trabalhando, talvez por isso. Polo menos isso foi o que lhe dixem a Reigosa. No ocaso da sua vida o insigne Cunqueiro falou-me com carinho do pobre Gracianinho, que acabou morrendo aos vinte e seis anos despois de enfermar em Burgo de Osma quando fora mobilizado. Era amigo dele, uns anos máis novo, e era poeta, pintor, debuxante e gozador do teatro e da farândula. Mas dom Álvaro salientava a sua amizade com o pai, dom Graciano, e relembrava o homem de pensamento livre e o deambular de ambos polas silenciosas ruas da cidade nos anos da República. Falava apaixonado do futuro e da liberdade, dizia Cunqueiro, e despois veu o Movimento em contra dos seus desejos e amolaram-no, injustamente, uma canalhada. Não o cheguei a conhecer. Morreu aos sessenta e tres anos, antes de meu pai conhecer a minha mãe, e no entanto a casa estivo sempre cheia da sua presença. A mesa do despacho, a sua letra caligráfica, perfeita, os livros dedicados… De não ser assim não teria eu nascido com um exemplar de Mar ao norde assinado polo génio. E todo isso numa casa ambulante, como é próprio da casa de um ferroviário, que navega de Cambre ao Bierzo, de Toural a Verím, de Ourense a Compostela e finalmente á Corunha. Em cada traslado, em cada mudança, um vagão de trem ia levando os enseres, a mobília, as cousas que ficaram… E entre elas um disco de vinilo, que era o Himno de Riego.

Quando meu avô foi destituído, no trinta e seis, a família tivo que vender todo para sobreviver. Segundo me conta minha mãe, recebia de maneira particular muitos paisanos que lhe vinham consultar este ou estoutro caso, e os mais dos pagamentos eram em espécies, claro, de jeito que tais actividades não evitavam a venda dos objectos que, para além dos mais dos móveis e alguma cousa de valor, era também o gramófono e os discos. Sempre imaginei o que seria a casa familar alá nos anos vinte e trinta, na rua Júlia Pardo, diante do quartel, com aquele gramófono e ouvindo música clássica e moderna. Havia ser verdadeiramente cálido e reparador no Mondonhedo culto e clerical, o Casino de ambiente liberal que no seu dia tivera em Leiras um dos seus homes ilustres e progressistas, o Mondonhedo civil, literário e musical de antes da guerra.

A fortuna dos livros foi inversamente proporcional à dos discos. Conservaram-se muitos, e dalguns nunca se soubo, como da Geografía del Reino de Galicia, cujo exemplar da província de Pontevedra se perdeu nem se sabe onde. Dos discos foi ao contrário. Ao se vender o gramófono, venderam-se também os discos. Todos menos um: o que continha o Himno de Riego. Um vinilo de 78 revoluções por minuto que nunca pudemos escuitar até o ano 74. Primeiro porque não tínhamos tocadiscos (criei-me com as canções da rádio até a televisão de 66 e o primeiro pick-up, que só tinha para discos de 33 e de 45 revoluções. Só o pudemos escuitar quando dando aulas particulares de guitarra comprei o primeiro giradiscos Dual-Bettor. Aí começou todo, e aí ouvimos aquelas vozes e aqueles sons. E ficava a incógnita: por quê ficou apenas aquele disco? Por quê não se vendera como os outros? Era delatar-se?

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O MAPA DE FONTÁN

dfontan02bNa livraria Suévia da Corunha –rua Vila de Negreira, 32– apresentou-se Fontán, o romance de Marcos Calveiro que foi ganhador da “IX edición do Premio de Narrativa Breve Repsol” em 2015. Como sempre acontece nos actos que se organizam neste pequeno espaço da Agra do Orçã –esse bairro populoso, popular e bem amado–, criou-se desde o início um clima cálido, propício para a arte e o sopro vital do contorno, a palavra expandida e o contacto físico inevitável que as reduzidas dimensões favorecem. Chegar subindo pola rua inclinada e encontrar ainda fora Yolanda Castaño, Víctor Freixanes, Alfredo Ferreiro ou o mesmo Marcos… Entrar e ver as amigas Leli e Ramona, já sentadas ao fondo… e dispor-se a ficar de pé durante todo o acto até que alguém sinala e oferece o único assento livre no espaço impossível…, todo eram os preliminares para que Víctor iniciasse o discurso como editor e cedesse a palavra ao crítico Martin Pawley, membro da “Agrupación Astronómica Coruñesa Ío”, que introduziu decontado o binómio poesia-ciência para abordar com seriedade a existência de um “nacionalismo” que na Galiza se formulou e veiculizou especialmente na imagem nos “poetas”, muito mais que no eido da ciência.

Domingo Fontán, dizia Marcos, percorreu em burro ao longo de dezasete anos a Galiza do século XIX, e assim recolheu os materiais necessários para o seu esplêndido trabalho, sendo o primeiro em realizar uma obra destas características na Península Ibérica. Marcos admira-se de que tardasse apenas dezasete anos. Incrível. Fontán, relacionado e reconhecido na Europa da ciência, foi um desses galegos que construíram futuro. Mas o autor não faz um panegírico do homem nem pretende em rigor fazer história, porque se trata de um relato ficcional, evidentemente. Às vezes a ficção supera a realidade, certo… E sorri quando comenta os protestos dos seus descendentes ou herdeiros ao se conhecer o Fontán professor universitário, as ideias sobre os seus alunos e a sua rigidez como examinador. E aí entra John Ford. Se alguém quer fazer uma obra sobre o oeste americano, deverá pescudar a fondo todo o que estiver relacionado ou tenha a ver com o território desde todos os ângulos… Deverá procurar todo, e despois esquecê-lo. Assim também Marcos Calveiro não toma notas. Durante mais de dous anos documentou-se, leu centos de livros. Não toma notas… Despois começa a redigir. Agora leva tres anos sem escrever. Não se pode ser taverneiro, atender os filhos e ao mesmo tempo escrever.

Marcos Calveiro sabe escrever narrativa ágil e move-se bem arredor da ciência, da arte e de realidades existentes que possibilitem a fluência imaginativa. Uma vez veu ao instituto para um encontro com os meus alunos sobre O pintor do sombreiro de malvas que eles leram, e foi bonito. Mas é possível que eu nem escrevesse este artigo nem fosse à livraria Suévia se não tivesse guardado na minha memória o mapa de Fontán. Marcos conheceu-no, o mesmo que eu, no romance Arredor de sí de Otero Pedrayo. Marcos não gosta do livro, mas diz que essa passagem é o que o salva. Eu gosto. Sempre gostei dessa estrutura circular odisseica como viagem iniciática, de aprendizagem, de conhecimento, e dessa escena memorável em que Adrián Solovio recebe de dom Bernaldo, seu tio moribundo, a consciência do país através do mapa de Fontán. Pois isso mesmo foi o que Cunqueiro experimentou em Lugo, no instituto da rua de São Marcos, e que a mim me transmitiu na última entrevista que tivem a sorte, a fortuna e o privilégio de lhe fazer. Eu tomei, dizia, consciência da realidade de Galiza através do mapa de Fontán, que havia em anacos num cláustro do instituto da rua de São Marcos, onde eu estudava bacharelato… E então eu comento com Marcos e ele diz que será o que está agora na Deputação de Lugo, e que seria um dos originais que se editaram. E penso eu: será o mesmo edifício. Está no mesmo lugar, o mesmo onde o vira Cunqueiro e se lhe instalara na memória, o mapa de Fontán.

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FEITOS EM CADEIA

É sete de agosto e a cidade está cheia de gente de aqui para acolá, que não pára, com tanto engarrafamento e o cláxon dos automóveis, que o tenhem proibido segundo o código, mas todo dá igual, que tanto tem, porque é a Semana Grande. Aproveitando a feira do livro deveria combinar com o Castinheiras, que lhe tenho o do Moncho, assinado e dedicado para ele desde há tempo e nunca tenho vagar… Mas a vida é assim, tão complexa e todo tão fugaz como dizia o cantar de Massimo Ranieri, L’amore è un attimo, 1971… Antes devo passar por casa da mamá e, bem mirado, deixarei o da feira para a tarde ou mesmo para amanhã, total o livro podo-lho dar ao Castinheiras qualquer outro dia, que tanto tem.

Bem, o caso é que é meiodia e ainda estou na casa… Haver ainda há tempo, pois, para chegar ao Castro, que estou convidado a jantar. Elas comem cedo, bem sei, sobretodo pola mãe que está afeita aos horários normais, mas não importa, tu vem amodinho, sem pressa, tanto dá um pouco antes que despois… Isso sim, se podes traes o pão, essa mesma bola de Vimianzo, ou se não de Neda, que está bem… É perfeito! O pão do país, o recendo da terra que era para Cunqueiro a madalena de Proust. Entretanto lembro que devo ficar um pouco… Oh! Onde teria a cabeça?! Em vinte minutos vai aparecer pola porta um repartidor que vém ex profeso de Compostela e com portes devidos! Como foi que aconteceu isto se o habitual nestes casos é que seja domiciliado? Mas foi assim e agora não tem volta. E para o pôr mais difícil ainda não tenho quartos na casa… agora mesmo… não sei, terei vinte euros! Todo se junta nos momentos mais difíceis… todo amoreado! Menos de vinte minutos. Vou baixar daquela ao caixeiro antes de chegar o repartidor. E vou ao caixeiro, insiro o cartão na fenda e… o que nunca acontece é agora que está a acontecer: como é a senha? Não lembro a senha! A senha do cartão de débito que emprego desde há tantos anos! Como é isso possível? Repito a operação: o mesmo. A senha! Alguma cousa me passa pola cabeça. Tento mais uma vez e… Era visto: cartão bloqueado!!! Tem de haver uma maneira, algo para saír daqui. Verei. Vou experimentar com este outro cartão que quase não uso. É de crédito e por isso não uso… Mas é o mesmo. O problema persiste porque costumo utilizar a mesma senha –ou quase a mesma– nas diferentes contas e nomes de usuário… A cousa começa a ser kafkiana. O que fazer?

Volto à casa. Já o repartidor vai aparecer em qualquer momento. Passar não passaria nada, que venha outro dia… Mas vém ex profeso de Compostela! Alguém chama. Não é ele. É minha filha que está com sua mãe, mas vém porque esquecera algo… Ah! Podia ser… Conto-lhe o lio em que me encontro… É ainda uma nena mas entende como estou, sem dúvida. Claro que o entende! Então teria ela o valor de me deixar esses quartinhos que guarda no seu peto, na mesa da cozinha? Ela deixa, sem problema. É tão riquinha! Também o fará porque me deve de ver a mim a entrar em colapso! Eu devolvo-lhos enquanto for possível, não se há de preocupar. Já chamam! Há ser ele. Certamente é ele. Tenho-o diante da porta com um pacote. Eu pago como se tal cousa, obrigadíssimo, que tenha bom dia, o suor polas tempas e parece que a respiração inícia caminho descendente (O comboio descendente, canção do Zeca). Vaites! E como sempre há um anticlímax, agora a nena espera que lhe devolva o dinheiro decontado! Mas o dinheiro levou-no o senhor, pequena! Ela vai concordando aos pouquinhos, terá o dinheiro amanhã, amanhã sem falta. Foi um favor grande, beijinhos. Uffff!

O tempo rachou entretanto e devo partir sem demora. Passar antes de nada por casa mamá, carro em fila dupla. Entro na panificadora: duas barras de pão. Eu pago e subo à casa da mamá. Que tal, mamá? Todo bem? Quem vai vir por aqui? Vai vir meu irmão, talvez filhos e sobrinhos. Adeus, virei à noite. Beijinho. Agora só resta o gasóleo, o caixeiro e “Ultramarinos Monforte”. Despois já saio pola “Rotonda do Pavo”, que me vém mais à mão e vou direção Arteixo para conectar com a A6. Todo perfeito. De repente…, merda! Antes paguei as barras e não as levei! Ficaram alá na padaria. Então levo daqui. Compro outras barras para casa mamá, uma bola de Vimianzo para o Castro e uma garrafa de Mencia da Ribeira Sacra, que está bom. O tempo passa. Como se me botou en riba? Saio decontado com os planos na cabeça, quase chegando à rotonda do Pavo e nesse preciso instante tenho o convencimento de precisar ajuda psiquiátrica: deixei as barras em Monforte, outra vez, as novas barras! Igual que antes, já pagas!!! Pausa. Colher folgos… Bem, tranquilo. Ante todo muita tranquilidade. Pensar o que fago nestes casos: pensar no pior que me pode acontecer na vida… Tranquilo. Comparado com isso, isto não é nada. Adiante. E sobretodo não perder a concentração. Troco de planos. Agora já não vou pola autovia de Arteixo. Tanto tem. É um trabalho de recomposição mental. Já enlinho pola Ronda de Nelle e repito a manobra: carro em fila dupla, panificadora. A moça que sorri: As barras! Aí estavam, esperando por mim. Adeus! Obrigado! Onde teria a cabeça? Passa-lhe a todo o mundo. Subo, bico, mamá, vai amodo, tranquila.

O que resta não deveria ser problemático. Farei como costumo ultimamente: saio da cidade, desvio à direita, subo à Zapateira e no cimo entro na rotonda provisional no que vai ser a “terceira ronda”. Chegado alá é todo autovia, o novo acesso ao aeroporto e confluência com a A6 à altura de Ledonho. Ainda bem que chegarei para jantar, um pouquinho tarde, mas não tarde de mais e chegarei em tempo. Subo pois a costa da Zapateira, deixo à direita o campus universitário, chego à rotonda. Quantas vezes eu passaria essa rotonda provisional, a seguir um passo estreito que me leva ao primeiro túnel, e todo direitinho? Quantas vezes? Sei-no com os olhos fechados, tão fechados tão fechados que nem reparo em que hoje há variações na saída… Dou uma volta completa à rotonda e acabo saíndo por onde não era! O máximo! E agora a conduzir por uma estrada fantasma até encontrar nalgum momento o ponto adequado para a viragem! Agora já é um pesadelo certo. O ritmo cardíaco aumenta sem dúvida, ou isso parece. Quanto mais tempo passa menos sossego e menos acougo… Aí! Aí à direita parece que se abre um espaço mínimo para fazer o giro. Gira o mundo gira… Volta de cento oitenta graus. Quantos quilómetros? Quem o sabe? Alguns, três ou quatro, talvez cinco…! Recuperar a rotonda e saír, esta vez sem erro, polo novo tramo que emboca nos túneis.

E agora atento aos limites de velocidade, primeiro por segurança, claro. Isso é sempre o primeiro. Atenção aos radares, que há muitos. A autovia está bem, do melhorinho, não como a de Arteixo com essas curvas insólitas. Está bem. Devo ter cuidado na saída, essa que tenho de tomar, a de Abegondo-Carral. Lembro o dia aquele quando me parou a guarda civil, aquela patrulha agachada naquele saliente como quem espreita por um funil a promesa de maio (canção do Fausto). Eu mui atento, não vaia ser… Primeiro tomar a saída…, daí a pouco ceder o passo… e finalmente um stop. É um stop com muita visibilidade, a curva é ampla, sem problema. Lembro bem aquele dia. Eu penso que parei de todo, mas alá estava a patrulha indicando-me parar, metida no curruncho entre a floresta. O guardinha a me pedir documentação e as perguntas todas. Sabe que há um stop, Sei, claro que sei. E parei, eu penso que parei, Não parou de todo, De todo não? Desculpe, eu pensava que parara de todo, passo por aqui tantas vezes, Não, não parou de todo. De todo é quando o veículo está parado com as quatro rodas! Desculpe, eu, Mas são 200 euros e quatro pontos, Uffff! Bem, desta vez passa, mas para a próxima já sabe, agora siga, Muito obrigado! …… Seria muito, mas todo podia ser. Desta vez parei com a máxima lentitude. A patrulha não estava. Afinal cheguei sem problema. Algo tarde, mas o jantar estava óptimo.

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SONHO DE NADAL

Havia tempo que não lembrava um sonho, menos ainda um pesadelo. Será porque fiquei dormido no assento do condutor na mesma praça de garagem, despois de chegar às duas e meia da manhã. A entrada no Nadal. Isso é o que acontece. Decerto foram dias de ritmo frenético, quase sem acougo. Primeiro as aulas, despois a viagem a Pontevedra para a Gala dos Prémios, dormir tres horas e voltar em trem para as aulas da manhã, reunião de trabalho, entregar os boletins e um rio de cento e cinquenta alunos pola Ronda de Outeiro cara ao cinema.

Ao dia seguinte sexta feira, a última do trimestre: aulas descontínuas, o vídeo que não vai. Configurar programa. O tempo que passa. Finalmente o tradicional vinho-comida de Nadal no mesmo centro: a primeira, a entrada nas férias. Os brindes, o humor de Quique, a doçura de Dulce, a alegria de Maica. Assim não há quem tema Virgínia Woolf! Às oito o recital com os poetas e com Lugris ao fondo, e já seguido, contra as once, o concerto de TRAC no Garufa: Smoke on the water, Stairway to heaven… Quando todo acabar serão as quatro da manhã! Que difícil é subir da garagem com a guitarra escaleiras arriba! E o corpo todo que pesa como chumbo!

O caso é que levamos os alunos ao cinema –ao teatro talvez? Ou seria música?– Em sombra nevoenta é preciso saír do edifício e petar na porta do que chamaríamos um mosteiro…, como o de São Martinho Pinário ou Santo Estevo de Ribas de Sil. Mas estava incrivelmente acaroado. De a pouco sai um frade que devia de ser como frei Barragán de Fray Escoba, o de Marcelino, ou mais bem o que viveu trescentos anos sob o canto da paxarinha…, oh my god! Entretanto na livraria Sisargas estamos a berrar: “Menos derrotismo / e mais surrealismo! / menos derrotismo / e mais surrealismo!, com Lugris na memória.

Não sei como é que entramos, mas o seguinte plano fílmico já contém a sequência do grande salão. Ao princípio não reparara, mas ao pouco vim que o cenário, a “scena” ou o “ecrám” do cinema estavam na parte alta, mesmo no cimo, de jeito que os últimos das filas olhavam de abaixo para arriba incomprensivelmente. O balbordo crescia cara a diante e foi então quando o meu estado não pudo já resistir e exclamei com voz alta e clara: “Bem. Até aqui chegamos. Todos os que estão desta parte para arriba saiam decontado! O que digo”.

Profe, como que sair?

O primeiro é saber estar, e bem vos avisei.

Todo começou a dar voltas. Eu encontrava-me no meio do salão, mais ou menos, e portanto também a meia altura. E enquanto os alunos traçavam movimentos indefinidos e imprevistos a minha cabeça dava voltas pensando que acaso tinha chegado mui longe. Talvez me passara. Não havia dúvida. E em todo o caso, como iam ficar sós apenas os de abaixo? Era todo um despropósito. Um erro irreparável. E foi quando despertei, finalmente, no meu quarto, com enorme cansaço e toda a terra a rodar. Sentir que é uma maravilha estar na casa, quase desperto, e sentir que fora quem de dar saída a um pesadelo insolúvel…

E o pior foi lembrar, como nun sonho, que no instante álgido do drama um aluno infeliz me punha os olhos em fite perguntando:

– “E eu por que? Eu portara-me bem!”

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A ESMORGA, DE IGNACIO VILAR

 

10734251_890936690931332_3253754363433617157_nQuando se vai ver um filme que versiona uma obra literária, não é preciso conhecer o ponto de partida para gostar, valorizar e desfrutar da peça cinematográfica. Essa é –tem-se dito– uma deformação observada a miúdo entre nós e entre alheios. Mas acontece que às vezes, como neste caso, o visionado do filme a partir do livro resulta inevitável. Levávamos muito tempo na agarda desta estreia porque acreditamos decerto no fazer de Ignacio Vilar, porque o elenco de actores era, desde o início, um garante, e porque A esmorga é um dos romances mais emblemáticos da literatura galega, único no seu momento e no seu género, e representa ainda hoje a amostra essencial da narrativa da após guerra nesse perfil sócio-realista tão particular que Blanco Amor cria, e que estabelece o contraponto ao singular mítico-realismo inventado por Cunqueiro.

Onte fomos ver, por fim, essa obra tão esperada, sabendo também das dificuldades que o cinema galego encara frente ao gigante económico e mediático. Havia contodo cousas bem feitas a priori: publicidade estática nos últimos dias, certa ressonância em canles audiovisuais, entrevistas e comentários nomeadamente na imprensa digital e actividade nas redes sociais. Apenas se precisava –e se precisa– a assistência da gente. O espectáculo estava preste para começar… e começou. N’A esmorga de Ignacio Vilar vemos sem dúvida o texto de Blanco Amor, com uma fidelidade admirável já desde as primeiras cenas. É mui de agradecer o esforço linguístico dos actores e o interesse por refletir uma língua autêntica nos registos sociais e dialectais que o escritor ourensano projectara. O leit motiv da chúvia como espaço simbólico na opressão dos protagonistas, o pensamento como expoente da conflitividade psicológica do Cibrán, o espaço fechado e itinerante de onde não é possível sair para nengures, a funcionalidade do álcool num estado degenerativo de personagens de extração social ínfima, sem consciência de classe, numa bacanal de dor e de incerteza sem qualquer horizonte à vista…, todo está presente no filme com o esmero e a pulcritude de quem respeita um clássico contemporâneo. Por outro lado, o seguimento pontual do âmbito dos bordéis, onde os personagens acham abeiro e conforto face à adversidade da rua, permite um dinamismo altamente expressivo em que salienta a altura interpretativa das actrizes e o pormenor realista e lúdico na sede e na doença.892225_772957979395871_468659688801436217_o

Também achamos, é verdade, algumas surpresas ou fazeres que outros levariam a efeito de outro modo. E aqui entra em questão o facto de conhecermos ou não o texto original. Algum espectador vizinho que não lera o livro, e com quem falei afinal, entrou desde os primeiros minutos num espaço depressivo de onde não saiu até o final, o que nem é estranho nem desmerece comentário. Aqui há um ponto chave: o tempo lento que se imprime ao filme e que, sem dúvida, não era a única possibilidade, pois o texto de Blanco Amor tem um ritmo de leitura mais ágil e dinámico na sua brevidade como romance. Esse tempo lento, ajudado por cadências musicais de piano inquietante, intensifica a angústia das personagens na linha do melhor cinema francês ou nórdico dos sessenta, o qual é um valor, mas o modelo também poderia ter sido o cine italiano da mesma época (Fellini, por exemplo), o que ganharia em dinamismo, agilidade e um maior destaque dos traços humorísticos que o livro contém. Nada impede, no entanto, que em todo momento vejamos a obra literária na longametragem, tanto polos cenários como pola entidade das personagens, magistralmente interpretadas. Diria-se talvez que a obra é a presença dos tres esmorgantes que Blanco Amor perfilara: o Cibrán que sai da casa de manhã para ser vítima dos acontecimentos, na memorável interpretação de Miguel de Lira, incrivelmente esplêndido na voz, no dizer natural e fluído, impecável nos acenos. O complexo Milhomes, de ambígua e insatisfeita natureza e proceder compulsivo, que Antonio Durán Morris deixará como um fito para a posteridade. O Bocas ressoluto e brutal encarnado de jeito encomiável por Karra Elejalde, acaso mais introspectivo que bestial a respeito do romance. Especialmente cuidada a dupla visita à casa dos Andrada, essa porta aberta ao mundo imaginário e mórbido que o escritor ourensano abrira desde o realismo, como quem por um momento se instala nas esferas de Dickens no acesso ao sonho desde o abandono e a miséria. E igualmente cuidado o espaço do paço do Castelo, âmbito voraz e sensual de lume e bebedela que precipita a fugida e a tragédia. Porém, entre os cenários tópicos do Ourense que o texto descreve (as ruas antigas, a catedral com a mesma capela do Cristo, a igreja de Santa Maria a Maior, a fonte das Burgas ou os referidos ambientes prostibulares de arrabaldo), temos a novidade de fermosas paisagens de bosques e fervenças que é obrigado salientar. E é por elas que o Bocas encara como um obsesso a procura da derradeira ignomínia.10619966_882340111790990_2344091731698912404_o

Quanto ao tempo, Ignacio Vilar instala as vinte e quatro horas da história narrada na Galiza do franquismo. Tal deslocamento temporal devemo-lo ler como um proceder bastante comum em casos semelhantes, que achega a conflitividade social à percepção dos espectadores. É certo que Blanco Amor situa estes feitos mais de cem anos antes, mas A esmorga aparece publicada em 1959, em plena ditadura franquista, e o tempo de produção possibilita ao público leitor identificar as torturas da Guarda Civil com o que acontece nessa altura. Olhado desta óptica é doado substituir a figura do “deputado” que viria inaugurar as obras da nova estrada pola do “caudilho”, e mesmo introduzir a referência ao encoro de Velle, inexistente no tempo do romance. Alguém poderia achar em falta –cousa à parte- uma maior presença do plano espaço-temporal do interrogatório, presente no filme, mas sem a conflitividade de classe, de estátus, de poder e de língua que tem no romance com um evidente relevo funcional. Ao não existir este plano, fica também suprimida a ambiguidade sobre o final do Cibrán, limitada agora a uma legenda fixa no ecrã que reproduz as palavras finais do romance. Fica a dúvida de se o espectador identifica no texto esse “alguacil” e esse “tio” do cronista. Mas seja como for, e voltando ao princípio, seria um erro reduzirmos a leitura do filme a uma simples relação dependente do livro, e no fim de contas o que de verdade importa é esse rio emocional que nos invade, essa força verbal e as humidades do corpo e do espírito, a tragédia de uns homens molhados pola chúvia num périplo circular de fugida cara à morte.

De resto, esta Esmorga constitue certamente um passo decissivo na história do cinema galego, um cine galego autêntico, feito com profissionalidade, com seriedade e com a paixão da terra. O sucesso dependerá de todos nós.

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Publicado en A esmorga, A Libreira, Agra, Blanco Amor, Cinema, Cultura, Cunqueiro, Edicións Positivas, Grupo Literario Leiras Pulpeiro, Ignacio Vilar, Leiras Pulpeiro, Letras galegas, Mondonhedo, Na prensa, Radio | Etiquetado | 8 Comentarios